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Das atribuiƧƵes de Engenheiros e Arquitetos

Recentemente uma discussĆ£o voltou a tomar as rodas de conversa entre Engenheiros e Arquitetos: a votaĆ§Ć£o da PL 9818/2018. Trata-se entre outras coisas, da revogaĆ§Ć£o dos parĆ”grafos 1Āŗ e 2Āŗ do Art. 4Āŗ da lei Lei 12.378de 31 de dezembro de 2010 que regulamenta o exercĆ­cio das profissƵes de Arquitetos e Urbanistas. Tais parĆ”grafos rogam sobre a autoridade do CAU- Conselho de Arquitetura e Urbanismo de definir quais sĆ£o as Ć”reas de atuaĆ§Ć£o exclusiva de Arquitetos e Urbanistas. Segundo o CAU trata-se de uma questĆ£o de autonomia, segundo o CREA e a prĆ³pria PL 9818/2018, trata-se de um problema legal, uma vez que nenhum conselho pode rogar por atribuiƧƵes exclusivas, que criem assim uma reserva de mercado.

O mais interessante Ć© que o prĆ³prio CAU, ao se defender cita a ResoluĆ§Ć£o nĀ° 218, de 1973 do CONFEA, mas esquece que essa mesma resoluĆ§Ć£o coloca as atribuiƧƵes dos arquitetos de forma compartilhada com Engenheiros Civis. Acredito que a maior divergĆŖncia deve ser quanto Ć  execuĆ§Ć£o do projeto arquitetĆ“nico. O que faz sentido uma vez que o projeto arquitetĆ“nico Ć© uma das partes mais caras do projeto de uma edificaĆ§Ć£o. PorĆ©m nĆ£o Ć© a Ćŗnica, e o CAU em sua manifestaĆ§Ć£o deixa de esclarecer pontos importantes como a atuaĆ§Ć£o de arquitetos no design de interiores, paisagismo, divisĆ£o de loteamento e atĆ© mesmo design de mĆ³veis. Pontos que entram em conflito com Designers, Eng. Florestais e BiĆ³logos, Eng. AgrĆ“nomos, Agrimensores e atĆ© mesmo marceneiros. Mas se vocĆŖ Ć© um arquiteto calma! NĆ£o me odeie aindaā€¦

Quando entro em conversas sobre o tema gosto de usar a analogia do Administrador. JĆ” imaginou se o Conselho Regional de AdministraĆ§Ć£o resolve dizer que sĆ³ Administradores de empresa Ć© que podem administrar empresas? Absurdo? Talvez, mas Ć© isso que acontece com a Lei 12.378 que fere os incisos II e XIII do art. 5 da ConstituiĆ§Ć£o Federal, sobre o princĆ­pio da reserva legal e princĆ­pio da liberdade do exercĆ­cio profissional.Com a palavra a carta magna:

ā€œĆ‰ livre o exercĆ­cio de qualquer trabalho, ofĆ­cio ou profissĆ£o, atendidas as qualificaƧƵes profissionais que a lei estabelecerā€.

Qualquer arquiteto pode argumentar, com razĆ£o, de que a criaĆ§Ć£o do CAU foi feita por Lei, por tanto nĆ£o fere a constituiĆ§Ć£o. O problema estĆ” no uso da palavra exclusiva pois, as atribuiƧƵes de Engenheiros tambĆ©m Ć© dada por forƧa de Lei, nĆ£o podendo haver sobreposiĆ§Ć£o de uma lei em detrimento de outra. Mas isso Ć© aspecto jurĆ­dico e nĆ³s, meros mortais, morrerĆ­amos na praia em qualquer debate pelo tĆ”rtaro da jurisdiĆ§Ć£o brasileira.

Pode parecer coisa atual, mas o assunto na verdade Ć© recorrente e data desde a idade mĆ©dia. NĆ£o haviam distinƧƵes de Engenheiro Civil e Arquiteto, as figuras eram mais bem representadas por imagens como: o mestre de obras e o projetista. O Projetista corresponde tanto ao arquiteto quanto ao engenheiro, VitrĆŗviu considerado o pai de ambas as profissƵes, deixou em seu tratado de arquitetura, as tĆ©cnicas necessĆ”rias para quaisquer projetistas da antiguidade, prezando tanto pelo lado humano, quanto pela precisĆ£o analĆ­tica.

A Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci exprime bem a mƩtrica usada pelo pai da Engenharia e Arquitetura.

JĆ” o mestre de obras, Ć© algo similar ao Engenheiro da ConstruĆ§Ć£o Civil, um profissional de escolha do rei, normalmente vindo de ordem militar porĆ©m de patente mais baixa que o projetista, e que era responsĆ”vel por lidar com a mĆ£o de obra da construĆ§Ć£o, dos processos construtivos, da qualidade e da adequaĆ§Ć£o dos parĆ¢metros usados. Naquela Ć©poca nĆ£o havia ABNT, mas jĆ” existiam tĆ©cnicas, e o mestre de obras era o homem de currĆ­culo vasto em obras do rei ou do impĆ©rio, que era capaz de lidar tanto com a alta patente, quanto com a mĆ£o de obra (escrava) da construĆ§Ć£o, comumente o problema da patente era resolvido com a experiĆŖncia e ele prĆ³prio se tornava um projetista com o tempo.

Ɖ interessante ter em mente que antigamente, em uma sociedade estamental, os responsĆ”veis por obras de infraestrutura eram os prĆ³prios militares, uma vez que a infraestrutura do paĆ­s era considerado assunto de seguranƧa nacional, e comumente a arquitetura do Estado se confundia com sua prĆ³pria proteĆ§Ć£o. Exemplos nĆ£o faltam: Luxemburgo, Toledo e a prĆ³pria Muralha da China, sĆ£o todas cidades/Estruturas construĆ­das para habitar e proteger. Com o tempo a tĆ©cnica de construĆ§Ć£o evoluiu, e foi necessĆ”rio que os profissionais passassem a se especializar cada vez mais, porĆ©m a funĆ§Ć£o da profissĆ£o continuava sendo a mesma: edificar.

Arquitetura de Luxemburgo, casas construidas seguindo a topografia, de forma concentrica de modo a proteger o nĆŗcleo, onde habitava a nobreza. Todo o paĆ­s foi construĆ­do dentro de uma fortificaĆ§Ć£o/castelo.

Foi em 1768 que o Engenheiro inglĆŖs John Smeaton passou a se autodenominar Engenheiro Civil, como uma forma de o separar da dos militares. Smeaton seguiu a tendĆŖncia da RevoluĆ§Ć£o Industrialā€Šā€”ā€Ša especializaĆ§Ć£o em um Ćŗnico ramo. John se via como um Engenheiro voltado para assuntos Civis, buscou atuar nesse tipo de infraestrutura. Criou a sociedade de Engenheiros Civis e deu inicio a uma das profissƵes mais tradicionais do mundo moderno.

Fato semelhante ocorreu no sĆ©culo XX, com o surgimento de movimentos modernistas, como a Bauhaus, The Stijl e Le Modulor, onde Arquitetos ou Designers (projetistas) visavam uma abordagem mais artĆ­stica sobre o seu trabalho, com uma filosofia bem definida e com uma abordagem versĆ”til Ć s demandas da sociedade. Surge entĆ£o a ideia de uma nova arquitetura, e com ela um novo profissional.

Quanto Ć  formaĆ§Ć£o deste profissional, deixo a palavra para o criador dessa arquitetura Walter Gropius:

ā€œĆ‰ mais importante ensinar um mĆ©todo de raciocĆ­nio do que meras habilidades. Deve ser um processo contĆ­nuo, que se desenvolva concentricamente, como os anĆ©is anuais de uma Ć”rvore. O ciclo de tarefas deveria permanecer global em todas as fases da educaĆ§Ć£o, nĆ£o ser dividido em partes isoladas, e aumentar gradativamente de intensidade e profundidade em todos os campos ao mesmo tempo[ā€¦] Se ele (o estudante) parte do geral para o particular, e nĆ£o o oposto, aprenderĆ” facilmente todas as outras minĆŗcias e as ordenarĆ” no lugar a que pertencem.ā€

NĆ£o obstante quanto ao Ć  capacidade criativa/artĆ­stica o mestre ensina:

ā€œEstou convencido, entretanto, de que hĆ” capacidades artĆ­sticas em todo ser humano; sĆ³ que hoje os valores mais profundos da vida sĆ£o prejudicados porque o acento principal de nossa existĆŖncia repousa em coisas secundĆ”rias, tais como o comĆ©rcio enquanto fim em si, e o lado puramente prĆ”tico desta ou daquela profissĆ£o.ā€

Ambos os trechos foram extraƭdos das pƔginas 86 e 81 do livro Bauhaus: Novarquitetura sƩrie Debates da editora perspectiva.

Gropius defendeu a formaĆ§Ć£o de um novo arquiteto, mais valorizado, que soubesse lutar pelo seu espaƧo. Feito essa ressalva, reafirmo minha convicĆ§Ć£o de que, se fosse ainda vivo, o criador da Bauhaus acharia essa discussĆ£o frĆ­vola, e muito distante do profissional que ele almejava educar. Muito mais do que arquitetos, as ideias de Gropius retratam o perfil de um projetista, e de quais habilidades ele deva ter. Tenho certeza que a cerne de todo esse debate Ć© o comĆ©rcio dos projetos arquitetĆ“nicos, pela a ĆŖnfase dada pelo CAU e por muitos arquitetos que debatem o tema, ou seja: questƵes secundĆ”rias. Se a capacidade artĆ­stica focada na resoluĆ§Ć£o dos problemas sociais fosse de suma importĆ¢ncia, o CAU nĆ£o estaria brigando por exclusividade de projetos, mas sim por garantias para a qualidade da execuĆ§Ć£o de tais projetos com seus conselhos irmĆ£os.

Pior ainda, se fosse mesmo o caso de uma atribuiĆ§Ć£o exclusiva, nĆ£o haveria necessidade nem de brigar por isso, seria como colocar biĆ³logo para executar uma cirurgia cardiovascular. Ele atĆ© conhece o objeto de estudo, sabe identificar as atribuiƧƵes de cada um deles. Mas ficaria totalmente perdido durante o processo e nĆ£o teria a mĆ­nima noĆ§Ć£o de como garantir a qualidade de sua soluĆ§Ć£oā€Šā€”ā€Špor qualidade entenda-se a aderĆŖncia Ć s necessidades do cliente. Mas tamanha divergĆŖncia sĆ³ mostra o quĆ£o distante estamos de nos tornar aqueles profissionais idealizados pelos projetistas que fundaram as bases do modernismo.

Muito se crĆ­tica da formaĆ§Ć£o do engenheiro, que supostamente ā€œnĆ£o realiza projetos durante a graduaĆ§Ć£oā€. Considero esta nĆ£o apenas uma constataĆ§Ć£o da dissonĆ¢ncia entre ambas as profissƵes, mas tambĆ©m da falta de respeito entre colegas profissionais. Primeiro porque a formaĆ§Ć£o do engenheiro civil lida com projetos desde do seu primeiro perĆ­odo, assim como a arquitetura. A grande diferenƧa estĆ” no tipo de abordagem para a soluĆ§Ć£o do problema. Enquanto o Engenheiro Civil possui uma formaĆ§Ć£o mais analĆ­tica, com uma preocupaĆ§Ć£o mais focada nos elementos e suas propriedades mecĆ¢nicas, o arquiteto possui uma formaĆ§Ć£o mais humanista, com uma preocupaĆ§Ć£o focada na utilidade, no uso do espaƧo e sua relaĆ§Ć£o com o ambiente. Ou seja, sĆ£o abordagens diferentes para solucionar um mesmo problema.

Mas isso quer dizer que um arquiteto serĆ” sempre melhor na soluĆ§Ć£o da utilizaĆ§Ć£o e um engenheiro melhor na soluĆ§Ć£o tecnologia?Absolutamente nĆ£o! A realidade mostra o quanto a linha entre ambas as profissƵes Ć© tĆŖnue. Gaudi Ć© um dos melhores exemplos disso, sendo um mestre na aplicaĆ§Ć£o de arcos de compressĆ£o, era arquiteto, mas sua soluĆ§Ć£o estrutural inspira engenheiros atĆ© hoje. Frank Lloyd Wright, um dos gigantes da arquitetura norte americana cursou Engenharia Civil, atĆ© largar a profissĆ£o para comeƧar a trabalhar como arquiteto independente. Outros como Santiago de Calatrava mostram que ambas as profissƵes andam de mĆ£os dadas, sendo formado tanto em arquitetura quanto engenharia. Exemplos nĆ£o faltam: Gustave Eiffel, Prestes Maia, Thomas Telford e porque nĆ£o: o prĆ³prio Leonardo da Vinci.

Torre Eiffelā€Šā€”ā€ŠicĆ“ne da arquitetura francesa, foi idealizada pelo Engenheiro Eiffel, para a Expo de Paris, de forma a provar para o mundo as viabilidade de construƧƵes em aƧo. A torre era para ser desmontada apĆ³s a exposiĆ§Ć£o, mas seu impacto no conjunto urbano e paisagĆ­stico foi tĆ£o grande que o governo optou por mante-la.

Portanto o debate sobre atribuiƧƵes das profissƵes nada mas Ć© do que uma danƧa frĆ­vola comercial. Ambos os profissionais sĆ£o capacitados para elaborarem soluƧƵes de ambiente construĆ­do e infraestrutura, e cada profissĆ£o possui suas caracterĆ­sticas e peculiaridades que irĆ£o ajudar o profissional na hora de elaborar sua soluĆ§Ć£o. Quem ganha com isso Ć© a sociedade que conta com maior variedade de escolhas na soluĆ§Ć£o de seus problemas. Minha opiniĆ£o Ć© a de que o debate deve evoluir em prol de normatizaƧƵes que garantam a qualidade do projeto, e evitem a usurpaĆ§Ć£o da profissĆ£o por ā€œaventureirosā€. Como exemplo o Regulamento TĆ©cnico da Qualidade para o NĆ­vel de EficiĆŖncia EnergĆ©tica de EdificaƧƵes Residenciais do INMETRO e a Norma de Desempenho 15.575 sĆ£o regulamentaƧƵes que trazem uma nova luz ao exercĆ­cio das profissƵes de projetistas.

O resto Ć© histĆ³ria.

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